Falta um dia para a Copa do Mundo começar, e David Luiz está relaxado. Aos 27 anos, tem exata noção de seu papel na seleção brasileira: divide a liderança em campo com o amigo e colega de zaga Thiago Silva e a preferência da torcida com Neymar. Sim, o cabeludo até pouco tempo desconhecido em sua própria casa é agora um dos principais anfitriões da competição que vai parar o país nos próximos 30 dias.
- Sou um privilegiado - repetiu algumas vezes nesta entrevista exclusiva.
Em quase 40 minutos de conversa, David Luiz falou sobre a expectativa de jogar a Copa em casa, suas idas ao ataque, os (poucos) cuidados com o cabelo e sua relação com a torcida brasileira. Revelou também o gosto por conversar com os psicólogos dos clubes. A seguir, a íntegra da entrevista.
GLOBOESPORTE.COM: Você, como outros jogadores da Seleção, nunca jogou o Campeonato Brasileiro, nunca foi ídolo de uma torcida aqui, só virou ídolo no Brasil por causa da Seleção. Como foi esse processo de as pessoas te conhecerem?
DAVID LUIZ: Eu me sinto um privilegiado, fui para Europa aos 18 anos, pulei etapas. Comecei no Vitória da Bahia, na terceira divisão, e de repente um garoto de 18 anos pôde jogar num dos maiores clubes da Europa (Benfica), o maior clube de Portugal, com maior número de associados no mundo inteiro. Depois disso, comecei a construir minha carreira fora do país, mas sempre com essa vontade, vocês sabem como eu gosto de ter esse contato com o torcedor, como isso me dá prazer e toca meu coração. Sempre tive aquela vontade de que povo brasileiro reconhecesse meu trabalho, a pessoa que eu sou, e isso veio depois com a oportunidade da Seleção. Hoje sinto esse carinho, sinto que as pessoas me conhecem não só como jogador, mas também como pessoa, e isso é o mais importante para mim.
GE:Você se considera um ídolo do Brasil hoje?
DL: Não, não. Eu me considero um jogador que tem uma das melhores oportunidades da vida de um jogador, sendo ele brasileiro, estar na geração privilegiada de poder jogar uma Copa em casa e, se ganhar, sim, virar um ídolo. Mas é algo que eu não gosto muito de aderir porque sou simplesmente uma pessoa, normal e brasileira, que tem uma oportunidade. Por isso, eu tento que minhas atitudes sejam corretas, na vitória ou na derrota, pois assim as pessoas conseguem enxergar o ser humano e não só o jogador.
GE:O que vocês, jogadores, falam sobre jogar a Copa em casa?
DL: Sabemos da responsabilidade, do privilégio que é jogar essa Copa do Mundo. Estamos num país com 200 milhões de habitantes, que tem milhares de jogadores qualificados para estarem na seleção brasileira. Conversamos como jogador, como torcedor, como pessoas normais. Temos ansiedades, receios, confiança.
GE: O que mudou na Seleção com Felipão e Parreira?
DL: Não é que mudou muito. Cada um tem uma filosofia. O Mano estava fazendo um excelente trabalho. Ele que me deu oportunidade de estar na Seleção, mas eu batalhei para tê-la. E sobre o Felipão, como te falei, quando já andamos em um caminho, sabemos melhor como andar nele de novo. Eles já caminharam para um título mundial, sabem como gerir tudo e todos.
GE: A Seleção foi vaiada no último amistoso em São Paulo. Você achou injusto?
DL: Não. É normal. Eu particularmente não acho (injusto), sou um jogador de futebol, gosto de futebol. Quando eu ia nos estádios eu queria ver gol. Quando você é criança e vê uma cadeira e uma latinha, você quer chutar para fazer gol. Você não passa, você não treina taticamente, você quer o gol. Muitas pessoas conseguem entender, mas outras não, é natural. Então as pessoas começam a vaiar. Muitas vezes o vaiar não é negativo. É como dizer: “Ó gente, a gente não está gostando”. Eles estão mostrando o que eles estão sentindo. Eu prefiro que a torcida mostre o que está sentindo do que sentar lá na cadeira e ficar em silêncio (cruza os braços). Quando fez o gol todo mundo não comemorou?
GE: Essas suas arrancadas são um pouco fruto disso, de querer fazer gol?
DL: São todas treinadas ao longo dos anos. Depende do esquema, do plano para o jogo. Tem o lance de ganhar jardas, de avançar, como no futebol americano. Vontade de fazer gol até goleiro tem. Mas tudo de forma treinada.
GE: Este time, nos jogos que valeram, sempre fez gol no início dos jogos. Este time está preparado para apanhar primeiro e ter de reagir?
DL: Preferimos fazer acontecer do que esperar acontecer. Só que nem sempre é dessa forma. Mas estamos, sim, preparados. Nos preparamos sempre para o pior. Não podemos perder tudo o que construímos se tomarmos um gol de cara. Muitas vezes num só jogo tem vários jogos dentro. Cabe a nós, aos jogadores com maior sensibilidade, de pedir "calma, gente".
GE: Você é o cara que está sempre calmo, que parece que nunca perde a cabeça. O que te tira do sério?
DL: Muitas vezes quando parece que estou explosivo, eu estou totalmente controlando a minha ação. É para se impor. Uma das coisas que aprendi é controlar a minha mente, as minhas ações. Porque quando se perde a cabeça, é quando se faz besteira.
GE: Você fez algum trabalho psicológico para isso?
DL: Desde os clubes que passei eu falo com os psicólogos. Sempre gostei. A pessoa inteligente é aquela que quer aprender com todos. Sempre fui aberto pra aprender. Muitas vezes quando falam de psicólogo, alguém diz: "Não sou maluco. Calma, gente, é só conversar. Fiz trabalhos assim no Benfica. Fiz trabalho para me concentrar nas faltas. Para me fechar no meu mundo, esquecer tudo, me concentrar nas faltas e pênaltis, por exemplo.
GE: Você fez media training (treinamento de mídia)?
DL: Não. Sou filho de dois professores. Eles sempre me ensinaram a ler. Só isso.
GE: Mas de onde vem essa desenvoltura para falar, aparecer?
Eu sempre quis melhorar. Na primeira entrevista da minha vida eu não levantava a cabeça. O que tenho no meu coração é o que falo sempre: não gosto de sorrir sozinho. Não é legal. Mexe com inúmeras pessoas o meu trabalho. Tento ajudar em muitos sentidos. Tento mostrar o máximo quem é o David.
GE: Nos jogos contra Panamá e Sérvia você teve o nome muito gritado pela torcida.
Fico extremamente feliz. Essa é uma das coisas mais importantes e emocionantes da minha vida. Um lance como aconteceu contra a Espanha (quando evitou um gol em cima da linha na final da Copa das Confederações no ano passado). O pessoal vai vibrar, gritar o seu nome. É bom, me deixa feliz. Eu sempre falo que é tão sem graça sorrir sozinho, eu não quero sorrir sozinho.
GE: Você faz caretas para o espelho?
DL: Sou louco, mas ainda não cheguei nessa loucura. Nunca gostei de foto normal. Desde pequeno. Nunca gostei. Isso cresceu comigo e hoje em dia. E quando tiro uma foto normal não gosto.
GE: Mas você se considera um cara carismático?
DL: Eu procuro ser o mais alegre possível. Gosto de ver que as pessoas estão se sentindo bem. Uma das coisas que aprendi na vida é que você não sabe o que a pessoa está passando. Se pensar um, dois, três segundos, pode tocar de uma maneira diferente na pessoa. Tenho a preocupação de colocar as palavras e agir corretamente. Se carismático ou não, não sei, eu sou natural.
GE: O quanto o teu cabelo ajuda nisso?
DL: Tem a parte boa e a má. A parte boa é que as pessoas logo reconhecem. "Olha aquele cabeludo lá." Quem não gosta de futebol também sabe. Mas quando você erra, fica marcado também: "Olha o cabeludo lá." Nunca passo escondido. Mas não tenho problema nenhum. Deixei crescer quando fui pra Europa por causa do frio. Tentava deixar crescer na Bahia, mas o calor batia.
GE: Dá muito trabalho?
DL: Não dá, não.
GE: Quando custaria cortar o teu cabelo?
DL: Não tem valor. Está caindo já, não vai precisar nem cortar.
GE: E se ganhar a Copa?
DL: Vocês estão forçando essa demais.
GE: Quando você vê os rivais que vai enfrentar na Copa, especialmente na primeira fase, o que pensa?
DL: Me dá uma dimensão plena que estou disputando uma Copa do Mundo. “David, chegou a hora, chegou a hora das melhores seleções" Então seja o Eto'o, Modric, Chicharito, são três excelentes seleções que vão querer ganhar do Brasil, vão querer se classificar.
GE: Você assiste futebol de férias? Gosta de assistir algum jogador ou time específico?
DL: Sabe o que eu gosto de ver? A molecada, quem tá chegando, jogador de base, para ver se eu acerto ou não. Um que provou, que eu vi muito esse ano, foi o Markovic (meia do Benfica que atuou pela Sérvia contra o Brasil). A dinâmica de jogo, a frequência com que ele toca na bola. Muito bom. Eu vejo. Tenho TV portuguesa em casa. Eu gosto muito de ver isso, gosto muito de futebol.
GE: E outros esportes? Você citou o futebol americano. Tira lições deles para o futebol?
DL: Tem tudo. Bloqueio nos escanteios é muito do basquete. Tento trazer coisas boas de outros esportes para dentro do futebol.
GE: Tem alguma coisa na sua rotina do futebol da qual você não gosta?
DL: Eu gosto de lembrar o quanto eu fui sortudo na vida. Reclamar não é comigo não, prefiro agradecer tudo o que eu tenho.
GE: Como você convive com os casos de racismo na Europa?
DL: Me incomoda que as pessoas não enxerguem que não importa a raça, a cor. O que importa é a essência, a pessoa, o coração. Sei que muitas pessoas fazem por incentivo dos outros, sem pensar. O que dói é que as pessoas não enxergaram o valor da vida. Um dia essas pessoas vão ver que isso é totalmente errado.
GE: Você já viu algum caso assim de perto?
DL: Convivemos com isso no dia a dia. Quando entra o David Luiz em um restaurante é tratado de uma forma, quando entra outra pessoa, é tratado de outra. Tratar as pessoas de uma forma diferente, isso também é racismo. Acontece todos os dias, infelizmente.
GE: Você se vê jogando no Brasil?
DL: Eu estou jogando, ué. No futuro vamos ver. Acabei de assinar um contrato com o PSG de cinco anos. O que eu planejo hoje pode não ser o certo amanhã. Amanhã vou ter filho, família, algumas prioridades mudam, você tem que pensar nos outros, não é só você. Se um jogador de futebol pudesse planejar a carreira dele, ele ia planejar assim: quero jogar nesse time, ser campeão todos os anos, ir para Seleção…
GE: Como as manifestações na rua mexem com você?
DL: Somos cidadãos, crescemos, temos nossa história. Sempre sonhei em um dia ter oportunidade de ajudar nossa nação. Não só dentro do campo, espero que o Brasil seja campeão dentro e fora do campo nessa Copa do Mundo. Desde que as manifestações aconteçam pacificamente, eu respeito. Não quero violência. Nós jogadores temos a possibilidade de sermos formadores de opinião, pode ser que consigamos ser exemplo positivo. Como podemos crescer, como podemos melhorar, como podemos sorrir juntos? É a condição social, a educação, a violência? Vamos achar um mecanismo que funcione, é mais fácil do que sair na rua revoltado. E me interesso por política, me interesso por meu país, sempre construí minha carreira lá fora, mas sempre acompanhei. E tudo porque não gosto da visão que os europeus têm sobre o nosso país, de que o Brasil é ruim. O Brasil tem inúmeras coisas para ser ótimo.
GE: Você está pressionado ou leve para jogar a Copa?
DL: Preciso me sentir bem, me sentir na obrigação. Mas temos de lembrar da oportunidade que temos e que não vamos ter nunca mais.
in Globo Esporte
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