quarta-feira, 28 de março de 2012

As chuteiras que me calças - Por Mafalda Ribeiro

No amor dos amigos, como tu, percebo que a vida não é um jogo de acasos e que eu não sou um acidente.
Na primavera de há dois anos, escrevi para ti e publiquei essa espécie de crónica num jornal desportivo para te surpreender no dia do teu aniversário.
Estavas cá, vestias-te de encarnado, eras meu amigo e uma das pessoas mais especiais deste meu caminho sobre rodas.
Ontem estiveste cá, mas vestido de azul. Ainda assim continuas meu amigo. Pegaste-me ao colo, queixaste-te que “sê tá gorda, mana!”, abriste, fechaste e empurraste a minha cadeira de rodas. A seguir aos noventa minutos em campo, mostraste-me que não há cores capazes de pintar o coração nem geografia que limite a distância quando se gosta de alguém.
Tu, que nem és de cá, foste quem me ensinou o benfiquismo. E ontem mesmo a desejar que fizesses um bom jogo, pela equipa adversária, continuei benfiquista de alma e coração. Contraditório? Talvez… É que até nos podemos sentir bipolares nas emoções, que ditam momentos, mas no essencial, que é o amor, somos indivisiveis.
Apoiar-te a ti não é ir contra o meu clube. Contigo, aprendi a ser ainda mais benfiquista e a gostar mais de futebol, assumo-o sem vergonha. O resultado de um jogo é apenas uma consequência.
Thank God i’m a (wheels) woman, que mesmo com azar ao jogo tem sorte no amor. Porque no amor dos amigos, como tu, percebo que a vida não é um jogo de acasos e que eu não sou um acidente.

(ao David Luiz – 22/04/2010)
Por tua causa, assumo, a imprensa desportiva passou a fazer parte do meu "café da manhã". O jornal Record citou-te há poucos dias após a vitória do nosso clube: "É preciso manter a humildade e os pés bem assentes no chão". Resumi-te na tua própria frase. Este és tu, sem tirar nem por. O equilíbrio entre a gratidão pelo que é e a fé inabalável no que há-de ser. Assim és tu: homem seguro e menino sonhador. O fiel de uma balança entre o de onde vieste e o onde estás agora. Este és tu, que não me deixas transformar-te num ídolo. Exiges ser em mim tão somente o David, sem coroa de rei e sem a força sobrenatural que derrota os "Golias" do futebol. Mas,por muito que te esquives do estatuto especial, na simplicidade que acima de tudo te caracteriza tão bem, não vou inibir-me de te dizer obrigada,publicamente, pelas "chuteiras" que me calças, cheias de garra e, ao mesmo tempo, de serenidade, neste que é o meu caminho aparentemente condenado à condição permanente de não poder chutar uma bola.
"Calças-me" com as certezas de que o meu propósito é muito maior que eu. "Calças-me" de motivação para ultrapassar todos os obstáculos intrínsecos ao facto de uma pessoa com mobilidade reduzida ir a um estádio de futebol. "Calças-me" cada vez mais de orgulho em ser benfiquista. As chuteiras que me calças são invisíveis aos olhos dos comuns, mas são elas que também dão significado aos meus pés pequeninos e frágeis para suportar o meu corpo. Fazes hoje o mesmo número de anos que o número que te identifica no Benfica: 23.
E ainda tens tanto para voar... Numa época em que o mundo fala de ti, eu preferi fazer diferente e falar para ti. Agradecer-te por me assentares os pés tantas vezes num chão que não piso. Trazendo-me à realidade e mostrando-me que o desafio não é chegar a lado algum, mas sim manter-mo-nos lá, fiéis ao que sempre nos foi fiel... Tu fá-lo na perfeição. Podias ser o meu irmão mais novo, mas o líder e o cuidador és quase sempre tu. Numa protecção que nunca sufoca e numa entrega reveladora de que há alguém que providencia a minha e a tua vida. Aí também és diferente de toda a gente que, como que a compensar-me do que não posso fazer,transforma(r)-me numa espécie de heroína, aspirina anímica ou exemplo a seguir.
Reconheces-me pela alma, que nada tem a ver com a minha condição física. É que o teu foco nunca será colocado nas pessoas, por isso dás-me sempre muito mais do que alguma vez eu julgarei que te dou. Quando empurras a minha cadeira de rodas, desenhas-me asas nas costas. Quando me pegas ao colo, mostras-me que a minha visão do mundo não é limitada pela minha altura. E é a partir do teu colo que consigo percepcionar uma canção da Ala dos Namorados: Pelo céu às cavalitas, escondi nos teu caracóis, a estrela mais bonita que eu já vi. Tu sabes que essa estrela estará sempre lá, contigo. Brilhará nos ataques e nas defesas, nos cortes e nos golos, nos penáltis e nos lances de bola parada, nos livres e nos cantos. No campo e na vida. Na tua e na minha. Já deixei de ser criança, e tu dormes à lareira. Ainda sinto a minha estrela, nos teus caracóis.

Texto de Mafalda Ribeiro

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