terça-feira, 8 de março de 2011

David Luiz, o coração na ponta da chuteira

Retirado do blog: A Pipoca Mais Doce!

O ano passado, quando o Benfica foi campeão, o Diário de Notícias pediu-me que escrevesse um texto sobre um jogador do Benfica. Escolhi o David Luiz, o meu preferido. Infelizmente, já se pôs a andar (como todos os que são bons). Fica o texto, para a despedida.

- Fica quieto, David, meu filho.
- Mas manhêeeeeee… eu não quero cortar o cabelo, não!
- Tem de ser. Filho meu vai assim prá Europa, não.
- Mas mãe, lá ninguém liga prá isso. Todo mundo tem penteado assim meio esquisito.
- David, se você não parar vai ficar tudo sem jeito. Êta, menino arretado.
- Mas mãe, eu sou assim como Sansão. Se você corta meus caracóis eu perco minha força, não consigo chutar na bola.
- Deixa de besteira, menino Já estamos terminando. Já ‘tou conseguindo ver suas orelhas.
- Manhêee?
- Sim?
- ´Cê acha que eu vou fazer bonito lá na Europa?
- Ô, meu filho. Que pergunta! Os moços não vieram buscar você? Então é porque você é bom.
- Acha mesmo?
- Claro! Toda a Bahia vai ficar sabendo seu nome. O Vitória é demasiado pequeno para seu talento. ‘Cê tem de ir em Portugal e mostrar práquela gente como ‘cê é bom de bola.
- Mãe, ‘cê arrasou meus caracóis! Não sobrou nem unzinho.
- Tá melhor assim, meu filho. ‘Cê tem de ver a bola!
-…
- David?
- Sim, mãe.
- Não vai lá pra Portugal me envergonhar, não. Seja sempre agradecido, humilde, e não esquece de rezar prá Deus estar sempre com você.
- Sei disso, mãe.
- Que sabe, o quê? ‘Ce é um garoto!
- Já tenho 19 anos, sou garoto, não!

Quem conta um conto acrescenta um ponto. E nesta história, que é minha, foi assim que David Luiz Moreira Marinho se preparou para deixar o Esporte Clube Vitória, um clube da série C brasileira, para se aventurar num dos grandes da Europa. No maior do mundo, para sermos correctos, que esta história é minha e não há clube maior que o Benfica.
Confesso, não me lembro da primeira vez que vi o David Luiz a pisar a relva da Luz. Talvez porque tenha aquela sensação que ele esteve lá desde sempre. Há tanto tempo que faz parte da mobília, do rol de meninos queridos, dos intocáveis, dos insubstituíveis. David Luiz é sinónimo disso mesmo: inigualável. Há outros bons, quase tão bons, mas nenhum assim. Excepcional.
Andamos para trás no tempo, assentamos arraiais em Fevereiro de 2007, Paris. Num jogo para a Taça UEFA, David Luiz era lançado às feras. Por culpa de Luisão, lesionado, mas muito por vontade do mister, Fernando Santos, que queria ver como o miúdo se safava. Com uma semana de Benfica, a coisa correu mal. Atrapalhou-se, enervou-se, errou passes que não podia errar, contribuiu para um dos golos do Paris Saint-Germain. Um dos três que levaram à derrota do Benfica. No intervalo pediu para ficar sozinho, suplicou ajuda a Deus, achou que seria enfiado no primeiro avião de volta ao Brasil. “Vi o mundo cair sobre a minha cabeça naqueles cinco minutos. Mas penso que a segunda parte desse jogo de Paris foi a prova de que era aquele o meu momento e que a partir dali poderia provar o meu valor dentro de campo. Foi ali que começou esta caminhada tão positiva”, diria mais tarde. Não estava errado. O jogo correu mal, paciência, mas toda a gente lhe reconheceu o talento, a raça, a persistência, a vontade de querer fazer sempre mais e melhor. Redimiu-se pouco tempo depois. A 1 Abril, na Luz, assegurava o empate contra o Porto. Não era mentira, era só aquilo a que nos começava a habituar.

- Mãe?
- Que é, David?
- ‘Cês vão me visitar em Portugal?
- Sei não, filho. É muito longe, tem um oceano separando a gente. Mas se der a gente vai. E ligamos p’ra você todo dia.
- Se eu ficar rico posso comprar uma casa p’ra vocês lá. Bem perto da praia, p’ra papai poder continuar pescando.
- ‘Cê sempre foi bom menino.
- Mãe, eu posso levar meus chapéus?
- Mas, meu filho, cê tem um monte deles. Quer levar todos?
- É. Pr’a dar sorte.

Na apresentação oficial, o miúdo das borbulhas adolescentes agarrava a camisola 23 e agradecia a oportunidade. Dizia querer sonhar cada vez mais alto. “Sou um jogador que me entrego ao máximo. Deixava sempre a pele em campo pelo Vitória da Bahia e aqui não vai ser diferente. Vou pôr o coração na ponta da chuteira sempre que jogar. Esse é que vai ser o meu ponto forte”, prometia. Magro demais, já com um metro e oitenta e cinco, caracóis rentes e polegares esticados, como quem diz que vai correr tudo bem. Correu assim-assim. Nesse ano o Brasil chamou-o para o mundial de sub-20, no Canadá, e acabou a época no Benfica como uma das grandes promessas, um talento a manter debaixo de olho, o contrato renovado até 2013 e uma cláusula de rescisão de 50 milhões de euros. Mas, no ano seguinte, o miúdo contratado para resolver a crise de centrais foi obrigado a parar por lesão. Uma época quase perdida, o tempo para os caracóis estilo fusilli crescerem, sempre escondidos pelos muitos gorros e chapéus da colecção.

O Benfica não desistiu dele, nem ele do Benfica. Começou a ser trabalhado para jogar como defesa esquerdo, para tapar buracos, para usar a altura como muro e não deixar passar ninguém. Novo azar, mais lesões, mais uma época irregular, mas sempre com os tais sinais de “special one”. Nem duas operações ao pé direito faziam parar o menino que andava à boleia dos colegas, por ainda não ter carta. Nada o impedia de fazer-se aos lances. “Se fugir do choque vou jogar ténis”, ironizava. O Benfica de Quique Flores insistiu em mantê-lo a defesa esquerdo, Jesus viu mais além, que para isso lhe serve o apelido, e trouxe-o de volta à posição original.

Hoje David Luiz é um central cobiçado por meio mundo (vade retro, Real Madrid), todos os olhos estão nele, mas nem sempre foi assim. Foi um acaso, uma questão de tamanho, um mal que virou um trunfo. Aos 16 anos era pequeno, franzino, rápido, muito ágil. Tinha tudo o que precisava para ser um bom médio-ofensivo e era nessa posição que brilhava. Mas depois começou a crescer. E a crescer. E a crescer. Em dois meses esticou 17 centímetros, inexplicavelmente. Passou das chuteiras 39 para as 43, e foi obrigado a recuar no terreno. Primeiro para trinco, depois para defesa central. Há pouco tempo, depois de um jogo, David mandava um recado a Quique Flores. Lamentava que nunca o tivesse deixado jogar onde se sentia confortável. Não era uma desculpa pela má época do Benfica com o espanhol, era a convicção de quem é bom naquilo que faz. Quando está no sítio certo.

- Mãe?
- Diz, meu filho.
- ‘Cê acha que um dia eu vou jogar em Itália ou em Espanha?
- Isso eu não sei. Mas ‘cê tem de se esforçar, fazer melhor todo o dia. Se você vacila, aí, menino, não tem volta, não.
- Sei disso, mãe. Em Portugal tem moça bonita?
- Que é isso, menino? ‘Cê vai p’ra Portugal p’rá jogar à bola, não é p’ra ficar se perdendo olhando p’rás garotas.
- Com esse cabelo curto desse jeito ninguém vai olhar p’rá mim, mesmo.
- Deixa de besteira. ‘Cê é bonito de qualquer jeito.

Já não imagino o Benfica sem o David Luiz. Sem os caracóis saltitantes e raçudos que percorrem o campo de ponta a ponta. O homem que joga com o coração na boca, que veste a camisola vermelha como se nunca tivesse conhecido outra, que bate com a mão no peito em jeito de desafio. Ai de quem se meta com o seu Benfica. No último jogo com o Braga, na Luz, uma faixa dizia tudo: “David Luiz, tu és 10, 100, 1000, o melhor de Portugal e do Brasil”. E eu arrepio-me, comovo-me e agradeço a sorte de poder escrever sobre ele.

(DN, Maio 2010)

5 comentários:

  1. Achei imensa piada quando li isto na revista do JN xD

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  2. Quando o Benfica foi campeão, fizeram uma revista, em que cada jogador tinha uma ou 2 páginas dedicadas a si

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  3. Ainda nao tinha lido :S
    Mas gostei :P
    Foi um bocado arrepiante :S
    Força David Luiz! Sempre contigo (L'
    M'A

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